sábado, junho 16, 2007

Como ser inteiro re- partido e...

Como ser inteiro re- partido e não perceber-se perdendo pedaços. Como entre tamanha luz iluminar-se, enquanto o negrume das noites abertas, de olhos abertos, de boca aberta, de coração aberto progride tomando as quinas e arestas. Seguir, como? quando? por quê? Talvez? Atracar, quê? quanto? O grande poeta torto estava certo:
toda batida, todo sopro, todo mirar, todo instante, todo sonho, todo ser, tudo...


Amar
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.



Carlos Drummond de Andrade